O recomeço póstumo de uma potência monstruosa
Seis reedições e nova antologia ampliam as possibilidades de leitura de uma ficção tensa, enxuta e sincopada do grande intérprete das entranhas suburbanas
compartilhe
Siga noSérgio de Sá
Especial para o EM
Dalton Trevisan nos deixou uma obra imensa, sem igual. O autor curitibano morreu em 9 de dezembro de 2024. Faria cem anos neste sábado, 14 de junho. Para marcar a efeméride, seus livros de contos voltam ao mercado em edições da Todavia, após mais de cinco décadas de publicação pela Record, inclusive com reedições no ano ado e uma excelente “Antologia pessoal”. Agora, nesse recomeço póstumo, são inicialmente seis volumes repaginados, uma antologia – “Educação sentimental do vampiro” – e o óbvio ululante: Dalton permanece vivo e faceiro.
A novidade mais bacana é a seção “Canteiro de obras”. Ao final de cada novo volume, um presente para o leitor viciado e curioso: fac-símiles de cartas (a Otto Lara Resende e Rubem Braga), de livros lidos (e quando relidos), de folhas em que Trevisan destaca trechos de leituras (de Guimarães Rosa e Pedro Nava), de capas de edições estrangeiras e de páginas com anotações manuscritas (“borrão”) sobre a própria obra, com datas da conclusão das histórias. Para um escritor que se manteve longe dos holofotes da mídia, encontrar esses papéis pessoais sobre o processo de produção é ouro puro. A gente só fica triste porque quer mais, sempre mais.
Essa vontade de repetir a experiência da leitura dos textos perde a marca da revisão minuciosa que o autor fazia de reedição em reedição, porque amos a ter textos “definitivos”. O fim da cautela mutante com que o autor cuidou de sua obra abre um vazio sutil, para os estudiosos da obra em particular. Entretanto, este Dalton Trevisan “permanente”, sem a sombra sequer da figura fugidia vista e procurada nas ruas e esquinas de Curitiba, convoca uma merecida nova canonização.
Leia Mais
Não para os fãs de carteirinha, sempre à espreita, textos curtos desembainhados. Mas para uma audiência mais ampla, que merece conhecer as histórias deste grande intérprete das entranhas suburbanas, de relações conjugais amarguradas e ressentidas, da violência travada entre quatro frustradas e miseráveis paredes, sob o olhar atônito de crianças criadas sem dó nem piedade. Trevisan reinventa uma cidade e seus temores, habitada por solidões nunca desfeitas, nem a pauladas.
É muito espantoso que uma recente lista dos supostos melhores livros de prosa e poesia brasileira do primeiro quarto do século 21 não tenha trazido um Dalton Trevisan sequer. Duas das obras relançadas se enquadram no período e poderiam ter sido facilmente nomeadas. Além do trato curto e preciso da linguagem de suas “ministórias”, “Desgracida” (2010) ofereceu, pela primeira vez, deliciosas “mal traçadas linhas” da correspondência do autor com Nava, Otto e Rubem, constelação de autores que aproximam o Dalton leitor da memorialística e da crônica. O livro também mostra o crítico ferino e divertido. Não poupa nem o “Grande sertão: veredas” de sua verve direta e sacana: “pouco vale pirotecnia verbal sem a originalidade do espírito”.
“O beijo na nuca” (2014) também volta às prateleiras no novo projeto gráfico que retira o sobrenome da capa, tentando fazer de “Dalton” uma marca autônoma. O último livro de contos inéditos publicado em vida ainda trazia desenhos do curitibano Poty Lazzarotto (1924-1998), colaborador vital do escritor, que agora tem seu traço a uma espécie de ex-libris próximo ao colofão de cada obra. As ilustrações foram reduzidas para dar lugar a grafismos ou fotografias nas capas – e nada entremeando os textos.
Ainda assim, permanece algo caro ao autor do seminal “O vampiro de Curitiba” (1965), também entre os relançamentos: o não-dito, o subentendido, as entrelinhas. Porque este parece ser o fio condutor da linguagem verbal criativa e elíptica de Dalton, como bem compreendeu o tradutor de seus contos para o inglês, Gregory Rabassa (1922-2016). “Com a sugestão, Trevisan alcança maior impacto que com a descrição, a ambiguidade das situações repousa antes no gesto ou no próprio pensamento do que nas palavras que os revelam”, escreveu.
Leia Mais
Mais do que poder, uma potência monstruosa. A força emotiva da desgraça (que não é apenas alheia) apresenta-se ao leitor em minúcias do desprezo que guardamos uns pelos outros. No Brasil de gente muito comum, vivendo do básico, de casa para o trabalho, com agens pelo bar mais próximo, a existência humana mostra suas garras negativas numa linguagem sem reticências, dentro de um texto propositalmente telegráfico, que se contrai na mesma medida em que as coisas são pronunciadas por um narrador nunca melodramático.
Marco da concisão
“Ah, é?” (1994) tornou-se um marco nessa concisão que explode em múltiplos sentidos, em clara inspiração nos textos zen-budistas que Dalton encontrou por seu caminho de ávido leitor. Menos, mais, quase-poesia. Em contraste retroativo com a dramaturgia de “Chorinho brejeiro” (1981), reunião de contos praticamente só compostos por diálogos. Mas também marcadas pela ausência, “a frase não escrita que, muitas vezes, amarra a história”, como bem percebeu Reynaldo Jardim na orelha da edição original.
Em “Pão e sangue” (1988), há um pouco de tudo, como se fosse fase de transição: haicai, paródia, pequeno drama, poesia, crime, narrativa policial. O jogo intertextual se dá dentro da própria obra, para além da presença da dupla dinâmica João e Maria, seus personagens recorrentes – o conto “A balada do Vampiro de Curitiba”, exemplo mais óbvio. Ocorre também em conversa com autores da predileção do autor, como o norte-americano J.D. Salinger e suas “Nove histórias”.
Para completar o retorno de Dalton neste centenário, com a promessa de que a obra completa será publicada aos poucos, oferece-se também a antologia “Educação sentimental do vampiro”, montada por Caetano Galindo e Felipe Hirsch, com 50 contos (dos mais de 700 publicados, segundo cálculo dos próprios organizadores) e 27 dos textos curtíssimos colocados sob o título “Ministórias”. Trata-se de um pessoal, de toda forma representativo da qualidade da prosa, ainda mais com a inclusão de narrativas clássicas, como “Uma vela para Dario” e “Cemitério de elefantes”, que muitos de nós lemos na escola (obrigados, ainda bem). As antologias também sempre permitem ver como um projeto se constrói. No caso de Dalton, pode vir de “um e outro conto de Tchecov”, de Machado de Assis ou das memórias de Léautaud, “velhinho sujo” e “mestre bandalho”.
Assim, o que nos resta de hoje em diante é aproveitar toda e qualquer chance para ler esta ficção tensa, enxuta, sincopada. A literatura de Dalton Trevisan tira sarro elegante de relações pessoais (também no mundinho literário), abrindo brecha entre as palavras para que se compreendam não apenas emoções comezinhas, mas um universo próprio à nossa cultura. Um espaço em que as taras sexuais estão sempre em pauta, custe o que custar, em que o rancor familiar atravessa a sala de jantar todas as noites, com ou sem comida à mesa, em que a felicidade é apenas uma frase limpíssima num livro de fábulas urbanas bastante reais, ornamentadas pelo melhor da tradição literária.
O que se perdeu com o fim da produção literária de Trevisan foi o olhar cirúrgico e sempre atualizado para a bandalheira brasileira, um cronista sacana que se negou a parar no tempo. Ter os contos de volta nos dá alguma esperança de que a memória não nos deixe ficar todos muito bem-comportados e engomadinhos, moços e velhos, fingindo que a morte não equivale ao amor, querendo que sejamos iguais na saúde e na doença, supondo que o gerúndio não nos enforca em caretice. Porque Dalton tinha o que dizer, de modo breve e genial.
SÉRGIO DE SÁ é doutor em Estudos Literários pela UFMG, professor associado na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e autor de “A reinvenção do escritor: literatura e mass media” (Editora UFMG) e “Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades” (Ed. do Autor).
“Uma tentativa de trazer frescor e ousadia”
a designer Filipa Damião conta como foi a criação do projeto gráfico das novas edições
“Dalton Trevisan colecionava recortes de notícias de jornal. Muitos viraram inspiração para seus contos. Ele também era profundamente visual: mantinha relações próximas com artistas como Poty e reunia vinhetas, desenhos, esboços. Por isso, pensamos em um projeto gráfico que funcionasse como uma memória visual — uma coleção que absorvesse essas referências tão importantes para ele.
O desafio? Reunir toda a sua obra (mais de 30 livros) em uma coleção coesa, mas com personalidade própria. O editor foi claro: “cada livro deve ser diferente do outro”. Nossa resposta foi equilibrar elementos fixos e variáveis. O nome DALTON, isolado (um pedido da Fabiana Faversani, coordenadora da coleção), é um elemento constante nas capas, mas pode mudar de posição e tamanho. Os títulos aparecem dentro de caixas — uma referência ao corretivo branco que o autor adorava usar — e também variam no layout.
O resultado transmite a sensação de algo ainda em construção. Isso não é por acaso: Dalton ou a vida reeditando seus próprios textos. Muitas vezes, frases se transformavam em contos, que por sua vez davam origem a novos livros. Nada, neste projeto gráfico, está perfeitamente alinhado ou centralizado. Assim como os recortes de jornal, cada capa parece montada à mão. É uma homenagem ao Dalton que nunca seguiu o óbvio — e também uma tentativa de trazer frescor e ousadia, com um apelo visual pensado para leitores mais jovens (também um pedido do editor). Projetos como este não seguem gosto pessoal. Eles nascem do respeito à obra, à memória do autor — e de uma vontade genuína de mostrar ao mundo um Dalton mais autêntico. Aquele que talvez poucos conhecessem.”