COMBATE À EXPLORAÇÃO

Trabalho infantil recua, mas Minas lidera ranking nacional

Mais de 213 mil crianças e adolescentes exerciam atividades econômicas no estado em 2023, aponta o MTE

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Desde os 12 anos, Gabriel* (nome fictício) acorda todo dia às 5h da madrugada para terminar os doces que ajudou a fazer na noite anterior. Às 6h, já está nas ruas de Belo Horizonte vendendo brigadeiros para complementar a renda da família. "Faço isso porque sou o mais velho, e lá em casa somos sete pessoas", conta o adolescente de 15 anos, que nesta quinta-feira (12/6), Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, ará mais um dia de trabalho nas ruas.

O relato reflete a realidade de Minas Gerais, estado que tem o maior número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, conforme diagnóstico feito pelo Ministério do Emprego e do Trabalho (MTE), no ano ado. Dados da pasta mostram, ainda, que 320 crianças e adolescentes no estado foram afastados do trabalho em inspeções só neste ano.

No Brasil, qualquer trabalho para menores de 16 anos é proibido, exceto aprendizes a partir dos 14 anos, contratados por programas como o Jovem Aprendiz. E mesmo os aprendizes devem atuar em atividades compatíveis com seu desenvolvimento físico e emocional.

No entanto, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), base usada pelo MTE, mostram que, em 2023, mais de 213 mil de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos estavam em situação de trabalho infantil em Minas Gerais. Número que coloca o estado como o líder do país em números absolutos, à frente de São Paulo (197.470) e Pará (174.137). No Brasil, eram 1,6 milhão na mesma situação.

Quase 40% deles encontram-se em atividades perigosas, insulabres, que oferecem risco à saúde, incluídas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), que tem mais de 93 atividades, estabelecida por decreto federal em 2008. Minas Gerais também lidera o ranking do país da Lista TIP, com mais 73 mil crianças e adolescentes encontrados nessa situação.

Foi o caso de 32 adolescentes afastados de uma indústria têxtil no Sul de Minas, em maio deste ano. “Só ali nós tivemos 591 máquinas interditadas, porque não eram seguras para os trabalhadores, quiçá para adolescentes”, afirmou José Tadeu, auditor-fiscal do trabalho, coordenador da Atividade de Combate ao Trabalho Infantil da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Minas Gerais (SRTb/MG).

O número de crianças e adolescentes encontradas em situação de trabalho, no entanto, vem reduzindo ano a ano. Na Pnad anterior, eram 237.222 crianças e adolescentes de Minas nessa condição, quase 10% de redução no comparativo com os dados de 2023. Em percentual, Minas tem 6,2% da população entre 5 e 17 anos do estado em situação de trabalho. É o quinto lugar nesse quesito, atrás da Bahia (6,4%), Piauí (8,6%), Tocantins (9,1%) e Pará (9,3%).

Por outro lado, a resposta a esse cenário tem se traduzido em um crescimento exponencial das fiscalizações no estado. “A boa notícia, se é que podemos falar assim, é que também estamos na liderança em número de fiscalizações. O combate está sendo efetivo”, aponta o auditor-fiscal. Segundo Tadeu, até 2020 os casos giravam na casa dos 70 por ano, com pouco mais de 60 fiscalizações realizadas. Agora, o número de operações praticamente triplicou. Só em 2025 já são cerca de 180 fiscalizações concluídas, com expectativa de alcançar a marca de 400 até o fim do ano.

O relato de Gabriel no início desta reportagem ilustra o perfil de jovens encontrados em situação de trabalho infantil. Em Minas, os casos refletem a pluralidade do estado. Há perfis distintos de acordo com a atividade: meninas são maioria nas indústrias de confecções e facções; meninos predominam nas oficinas mecânicas, construção civil, lava-jatos, açougues e borracharias. Em comum, todos compartilham a vulnerabilidade social. São meninos e meninas de baixa renda que precisam ajudar a complementar a renda da família.

“Nenhum deles trabalha por diversão. Eles perdem a infância, perdem a adolescência. A grande maioria abandona a escola, e isso alimenta um ciclo excludente da pobreza e da falta de oportunidades”, reforça o auditor-fiscal. Hoje, 66,1% das vitimas do trabalho infantil são negras, de acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).

As fiscalizações seguem um planejamento anual, com dois operativos por semestre voltados exclusivamente para o trabalho infantil. No entanto, qualquer operação fiscal do Ministério do Trabalho, mesmo que a prioridade seja outra, os auditores têm a obrigação de verificar a presença de menores em situação irregular, explica Tadeu. Caso identifiquem, devem agir imediatamente. As fiscalizações também ocorrem por denúncias feitas pelo site da Auditoria Fiscal do Trabalho. O empregador então é autuado e o processo encaminhado ao Ministério Público.

Depois de afastadas, as crianças e adolescentes são encaminhadas a diversos órgãos, como os Centro de Referência Especializado de Assistência Social e à Secretaria Municipal de Assistência Social, para serem inseridas em políticas públicas que evitem o retorno ao trabalho. Os adolescentes ainda podem ser incluídos no programa de aprendizagem profissional, no qual tem prioridade. “Nós temos obtido grande sucesso na inclusão do egresso na aprendizagem, onde ele vai ter um trabalho protegido e aprender com atividades, teóricas e práticas. Isso aí que é o interessante, que a gente retira e consegue uma oportunidade, uma solução para aquela situação de trabalho infantil”, completa José Tadeu.

Apesar dos avanços, o auditor-fiscal reforça que o simples afastamento da criança ou adolescente não é suficiente para romper o ciclo da exploração. Muitos são afastados de atividades degradantes apenas para, pouco tempo depois, aparecerem empregados em outro local. “Aí só muda o endereço. O mero afastamento não garante o não retorno ao trabalho. Nós precisamos de ações integradas e articuladas por toda a rede de proteção, para a garantia dos direitos violados dessas crianças e adolescentes”, comenta o auditor-fiscal, que também é filiado à Delegacia Sindical em Minas Gerais do Sindicato Nacional de Auditores-Fiscais do Trabalho (DS-MG/SINAIT).

Fora do radar

Em Belo Horizonte, um dos trabalhos infantis à vista de todos são os vendedores ambulantes nas ruas, campo que, apesar de estar na atuação da Inspeção do Trabalho, extrapola os limites da fiscalização, que acaba concentrada em atividades formais “com CNPJ”. “Basta sair pelas ruas para ver crianças na venda ambulante. Isso é uma das piores formas de trabalho infantil, segundo a OIT”, afirma Elvira Mirian Veloso de Mello Cosendey, coordenadora do FNPETI em Minas Gerais.

Mensalmente, a entidade tem reuniões com conselhos tutelares, secretarias de assistência social, CRAS, CREAS, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública, entre outros órgãos, para abordar o enfrentamento ao trabalho infantil e a profissionalização dos adolescentes, com estímulo à aprendizagem. Elvira lembra que, de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, o Brasil deveria ter erradicado as piores formas de trabalho infantil até 2015, prazo que foi estendido até 2025 e ainda não foi alcançado. “Nós avançamos muito nessas duas últimas décadas. Houve uma redução significativa, mas ainda tem que avançar muito”, afirma.

Ela defende a presença permanente de equipes de abordagem social nas ruas. “Elas precisam identificar essas crianças e entender o que falta à família para que ela não viole esse direito. O direito de não trabalhar na infância é um direito básico. Quando ele é violado, a infância vai junto. Se você quiser tirar a inocência de uma criança, coloque ela na rua para trabalhar”, aponta. Segundo ela, muitas vezes o trabalho infantil nas ruas ainda é a porta de entrada para outras violações. “Os meninos que começam vendendo doce aos 8 ou 9 anos, aos 12 já estão entregando droga”, afirma.

Mais trabalho, menos estudos

Há um ponto que une todos os especialistas que lidam com o tema: o trabalho infantil não é só uma violação legal. Ele compromete o desenvolvimento integral. Crianças que trabalham têm mais dificuldade de socialização, aprendizado e desenvolvem menos suas habilidades cognitivas e emocionais. Segundo estimativas do relatório global Child Labour: Global Estimates, quase 28% das crianças de 5 a 11 anos e 35% das de 12 a 14 anos que trabalham estão fora da escola. A necessidade de trabalhar cedo levou 39,1% dos jovens brasileiros a abandonarem os estudos, seja por pressão dos pais ou iniciativa própria para ajudar a família.

Como foi o caso de Gabriel, que, apesar de não ter deixado a escola, está atrasado nos estudos e precisou repetir de ano, e hoje aos 15 anos está no 9º ano do ensino fundamental. “Já existem diversas pesquisas que mostram o quanto isso é danoso. Por isso está no Estatuto da Criança e do Adolescente como algo que não deve ocorrer”, afirma Cristiano Moura, gerente de programas da ONG ChildFund Brasil, organização que atua há cerca de 30 anos no desenvolvimento integral e na promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, com sede em Belo Horizonte.

O trabalho infantil não só atrapalha o desempenho escolar, como também promove a evasão, afirma o especialista. “Em vez de brincar, aprender e interagir com colegas, essas crianças estão inseridas em ambientes totalmente inadequados para a idade”, observa. Isso gera um estado de vulnerabilidade múltipla — intelectual, física e relacional — que compromete o presente e também o futuro desses jovens. “Muitos chegam à idade adulta sem as habilidades necessárias para se manter em um emprego ou gerar renda própria, o que os torna mais suscetíveis a relações de trabalho precárias, inclusive em condições análogas à escravidão”, aponta.

Perpetuação da pobreza

O trabalho infantil não só rouba a infância — também fecha portas para o futuro. Sem estudos, menor a renda futura e muito mais provável que o ciclo de pobreza se repita, geração após geração. Conforme aponta o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador, quanto mais cedo uma pessoa entra no mercado de trabalho, menor é a renda obtida ao longo da sua vida adulta.

“A falta de estudo dificilmente rompe a pobreza nas famílias, levando a um ciclo que se repete nas demais gerações, uma vez que sem conhecimento suficiente para mudar de vida a criança envolvida no trabalho infantil tende a repetir os padrões familiares”, afirma o auditor-fiscal José Tadeu.

Para a coordenadora do FNPETI-MG, o enfrentamento ao trabalho infantil exige mais investimento em políticas públicas voltadas para a criança no contraturno da escola, em especial em escolas em tempo integral. “Enquanto uma criança está na escola, com o à alimentação, reforço escolar, cultura e lazer, ela não está nas ruas vendendo nada. Mas isso exige estrutura, vontade política e visão de futuro”, destaca Elvira.

O problema, aponta Elvira, é sistêmico. Vai desde a ausência de políticas públicas até uma romantização de casos em que crianças são colocadas em posições de destaque por pais em busca de retorno financeiro. “Existe uma cultura do trabalho infantil que precisa ser enfrentada. Na publicidade, no futebol, nas artes, quem está colocando essas crianças nessas posições são os próprios pais. E isso não tem a ver com pobreza”, afirma. Usar casos isolados de superação de pessoas que quando crianças ou adolescentes trabalharam e na vida adulta alcançaram sucesso profissional ou fama, para ela, estimula a banalização do trabalho infantil, já que a grande maioria dos explorados na infância não chega a boa condições na vida adulta.

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Para José Tadeu, além da romantização, há uma cultura que ainda naturaliza o trabalho precoce, principalmente quando associado a situações de vulnerabilidade, como a ideia de que “é melhor trabalhar do que roubar” ou que o trabalho precoce previne o uso de drogas. Ele rebate: “A vida não é binária. É muito melhor estar estudando, se qualificando, até mesmo brincando, porque isso faz parte do desenvolvimento saudável.”

Também pesa a desigualdade social, que empurra crianças para o trabalho por pura necessidade. “A fiscalização ao afastar e fazer esse encaminhamento busca exatamente isso, que as políticas públicas alcancem essas crianças e adolescentes que estão com seus direitos violados, para tenham uma vida produtiva inclusive no trabalho futuro, se preparando, estudando, tendo a profissionalização adequada”, conclui.

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